sábado, 27 de novembro de 2010

Borboleta transparente, fita lilás e outras alegrias

Quando eu nem te conhecia, quase nada era lilás. Aliás, o lilás, se não me engano, nem estava na minha caixa de lápis de cor. E nem o transparente. Onde já se viu um lápis de cor transparente? Mas, enfim, até eu te conhecer, muita coisa era diferente. Uma delas: eu não usava adereços. Mas, talvez fosse porque eu ainda não tinha teu endereço. Afinal, depois que eu te descobri, ali do lado, sorrindo o tempo todo, vi que dava pra ser mais feliz, vi que dava pra ser menos grosso, vi lilás e transparente o tempo todo.

Quando você apareceu, meio do nada, nada acanhada, trouxe borboletas coloridas. Algumas podiam-se ver verdes. Outras pareciam amar amarelo. Algumas vermelhas, melhoravam as cores. Outras assim, azuis, anis. Eram, cada uma, de uma cor. E era, uma a uma, de várias cores. Porque batiam as asas muito rápido, e as cores se misturavam, feito multidão que vai a festa num sábado. Mas, a que ficou é transparente. Pendurada, assim, de repente, num fio fino também transparente. No meu pescoço, no meu peito, de um jeito que não tem jeito, parece quase perfeito, amaciando defeitos, num amor do lado esquerdo.

Já o lilás, meio sem costume, veio por acaso, depois de um abraço. No pulso da mão mais sua, fez-se um laço. E o nó, que para prender, precisou ser sem dó, amarrou você em mim, lhe prendeu assim sem fim, talvez para notar se ainda pulsa, o pulso do querubim, o amor que se debruça no lilás que há em mim. Porque lilás não se desfaz. E esse seu já nem desbota; até se corta, mas não se vai. Fica aqui, ao redor do braço, lembrando você em mim em cada passo, lembrando os seus passos que há em mim.

E a história que se conta, do transparente e do lilás, se o contador já não sou eu, pensando em ti o tempo todo, pode errar no tempo e no espaço, essa história de amor, cores e alegrias. Então quem ouviu a nossa história, e me vê de transparente e lilás, sabe que você ainda está aqui. Mas, quando não houver mais o lilás, nem o transparente que há em mim, parece que só eu vou saber, o quanto de você ainda resta, o quanto de mim ainda vive, e o quanto as alegrias, as cores, o lilás e o transparente, têm força para não desbotar... Enquanto o tempo passa...

sábado, 20 de novembro de 2010

Que as músicas falem por mim #8

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Música alterada para entoar uma tristeza menos triste que a anterior.
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"Não me falta cadeira,
não me falta sofá.
Só falta você sentada na sala,
só falta você estar.

Não me falta parede
e nela uma porta pra você entrar.
Não me falta tapete.
Só falta o seu pé descalço pra pisar.

Não me falta cama.
Só falta você deitar.
Não me falta o sol da manhã.
Só falta você acordar.

Pras janelas se abrirem pra mim
e o vento brincar no quintal,
embalando as flores do jardim,
balançando as cores no varal.

A casa é sua.
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
porque você demora.

A casa é sua.
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
o peso desse relógio.

Não me falta banheiro, quarto,
abajur, sala de jantar.
Não me falta cozinha.
Só falta a campainha tocar.

Não me falta cachorro,
uivando só porque você não está;
parece até que está pedindo socorro,
como tudo aqui nesse lugar.

Não me falta casa;
só falta ela ser um lar.
Não me falta o tempo que passa;
só não dá mais para tanto esperar.

Para os pássaros voltarem a cantar
e a nuvem desenhar um coração flechado,
para o chão voltar a se deitar
e a chuva batucar no telhado.

A casa é sua.
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
porque você demora.

A casa é sua.
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
o peso desse relógio."

("A casa é sua", de Arnaldo Antunes)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

6ª da série "diálogos curtos":

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Hoje, dia seguinte ao enésimo desabamento do nosso mundo, dia seguinte ao pedido de tempo e espaço para organizar as ideias, eu resolvi ligar para saber como ela estava:
- Oi!
- Oi...
- Você melhor?
Ela pareceu não entender.
- Hã?!
Eu repeti:
- Você melhor?
E ela, com um tom de quem não entendia direito o porquê daquela pergunta:
- Melhor de que?...
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Putz!... Como a vida prega peças! Eu nunca imaginei que me faria mal saber que ela não está mal.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Que as músicas falem por mim #7

"Deixa em cima dessa mesa a foto que eu gostava
pr'eu pensar que o teu sorriso envelheceu comigo.
Deixa eu ter a tua mão mais uma vez na minha
pra que eu fotografe assim meu verdadeiro abrigo.

Deixa a luz do quarto acesa, a porta entreaberta,
o lençol amarrotado, mesmo que vazio.
Deixa a toalha na mesa e a comida pronta,
só na minha voz não mexa - eu mesmo silencio.

Deixa o coração falar calar o que eu calei falei um dia.
Deixa a casa sem barulho, achando que ainda é cedo.
Deixa o nosso amor morrer sem graça e sem poesia.
Deixa tudo como está, e, se puder, sem medo.

Deixa tudo que lembrar; eu finjo que esqueço.
Deixa e, quando não voltar, eu finjo que não importa.
Deixa eu ver se me recordo uma frase de efeito
pra dizer te vendo ir, fechando atrás a porta.

Deixa o que não for urgente... eu ainda preciso.
Deixa o meu olhar doente pousado na mesa.
Deixa ali teu novo endereço; qualquer coisa aviso.
Deixa o que fingiu levar, mas deixou de surpresa.

Deixa eu chorar como nunca fui capaz contigo.
Deixa eu enfrentar a insônia como gente grande.
Deixa ao menos uma vez eu fingir que consigo;
se o adeus demora, a dor no coração se expande.

Deixa o disco na vitrola pr'eu pensar que é festa.
Deixa a gaveta trancada pr'eu não ver tua ausência.
Deixa a minha insanidade - é tudo que me resta.
Deixa eu pôr à prova toda minha resistência.

Deixa eu confessar meu medo do claro e do escuro.
Deixa eu contar que era farsa minha voz tranquila.
Deixa pendurada a calça de brim desbotado,
que, como esse nosso amor, ao menor vento oscila.

Deixa eu sonhar que você não tem nenhuma pressa.
Deixa um último recado na casa vizinha.
Deixa de sofisma e vamos ao que interessa.
Deixa a dor que eu lhe causei agora é toda minha.

Deixa tudo que eu não disse, mas você sabia.
Deixa o que você calou e eu tanto precisava.
Deixa o que era inexistente e eu pensei que havia.
Deixa tudo o que eu pedia mas pensei que dava."

("Se puder, sem medo", de Oswaldo Montenegro)

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Afinados!

"Deixa o nosso amor morrer, sem graça e sem poesia"
("Se puder, sem medo", de Oswaldo Montenegro)


Este dia 2 de novembro bem que devia ter sido um dia tranquilo. Dia de Finados, não apenas pela analogia, merecia uma calmaria, um descanso em paz. E, na verdade, até pareceu ser assim. Pareceu... Apenas pareceu!

Mas, como toda situação que se preze, há sempre dois lados, como nas moedas de um a 100 centavos. E o lado que escolho para escrever hoje, é o que discorre sobre calmaria, sim, tranquilidade, sim, descanso em paz, sim. Afinal, é Dia de Finados. E a morte é algo de que não podemos fugir. Repudia-se a ideia, repele-se o pensamento, adia-se o inveitável, mas morre-se. E eu venho morrendo gradativamente.

Este texto não chega a ser um obituário. Não, ainda. É, antes, uma homenagem aos amores já mortos. Os que estão por morrer ficam para uma outra hora. Agora, falo sobre como venho morrendo e, mesmo subliminarmente, sobre como morreram certos amores.

Tenho morrido, ao menos, duas vezes ao dia. Parece ser a posologia que o médico a quem chamamos destino me impôs. Morro quando acordo e quando durmo. Morro acordado por pensar. Morro dormindo por sonhar. E, por mais que eu tente, não consigo não pensar nem não sonhar. Então, morro. Morro porque é inveitável pensar, por algum tempo e intensamente, assim que acordo e pouco antes de dormir, em como a minha vida está (ops! ainda há vida). E morro porque, há tempos, quando durmo, sonho com como a minha vida está (é, ainda há vida!).

A propósito, a posologia de hoje já excedeu a cota mínima, mesmo eu ainda não tendo ido dormir. Morri mais que as duas vezes prescritas. Morri quando passeei pelo zoológico, cheio de bichos e tão vazio de mim. Morri pela praia, tão cheia de areia e de água salgada, mas, quase o tempo todo, tão seca, tão sem graça, tão sem vida. Morri por estar ali incompleto, em lugares onde tantas vezes estive tão pleno. Morri porque não consigo sobreviver impune à abstenção de uma felicidade que construí junto e da qual não usufruo mais, nem sozinho. Morro constante e intensamente.

Mas, desde sempre, a vida segue, apesar da morte. Até mesmo, quem sabe, para os que morrem. E, como eu disse, esse texto é uma homenagem apenas aos amores já mortos. Amores que tiveram corações afinados, mas que, independente do motivo, passaram a estar afins na dor. Porque é isso! Os amores morrem! Dolorosamente, morrem. Dói dizer isso, e dói vê-los morrendo. Em mim ou em quem quer que seja. Mas, repito. Escrevi esse texto para os amores que já morreram. Os que estão por morrer ficam para um outro momento. Porque, afinal, se a vida segue para os que já morreram, imaginem para os que ainda não se findaram...

"Deixa tudo como está. E, se puder, sem medo"
("Se puder, sem medo", de Oswaldo Montenegro)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sinto muito! Ela não mora mais aqui...

"Às vezes é difícil esquecer... Sinto muito! Ela não mora mais aqui... Mas então, por que eu finjo que acredito no que invento? Nada disso aconteceu assim, não foi desse jeito. Ninguém sofreu e é só você que me provoca essa saudade vazia, tentando pintar essas flores com o nome de 'amor-perfeito' e 'não-te-esqueças-de-mim'."
("Acrilic on Canvas", de Legião Urbana)


Ela se foi. E agora, aqui, nesse vão, somos apenas eu e os escombros do que tentávamos construir. Ela reuniu alguns apetrechos numa mochila e se foi. E o pior de tudo não é, exatamente, o quanto doi. O pior de tudo é que ela se foi, inapelável e definitivamente, e, pela primeira vez, eu não pude ir com ela. Ao que parece, ela escapou por um túnel muito estreito, por onde só dava para passar um por vez. E nem seu rastro eu pude seguir.

É doloroso relembrar seus passos. Eu assisti à sua ida, ali, de perto, sem conseguir fazer nada. Eu estava praticamente inerte. Eu a vi compor sua bagagem com muita coisa que eu ainda precisaria ter comigo. Ela se foi, e levou o aconchego que agora eu peno para encontrar em outro lugar, porque, afinal, parecia exclusivo. Ela guardou nos bolsos grandes da sua mochila, a crença inabalável que eu tinha no lado bom das pessoas e a certeza que eu tinha de que vale a pena confiar.

No meio de suas arrumações, vi que ela preparou, sem tanto cuidado, um volume que deixou ao lado da mochila. Ela fez o embrulho com pouco caso, é verdade, mas eu quis acreditar que, por ter deixado fora da mochila, seria algo especial.

Ela levou consigo livros que não lemos juntos, mesmo que tenhamos prometido fazer isso. Levou músicas que não a fiz ouvir. Levou lugares que não visitamos e que ficaram ainda mais distantes da gente. Ela levou a roupa branca que eu usava às terças e, depois, em qualquer dia da semana. Levou até um flamenguismo feminino que eu sempre tinha comigo, mas que já vinha perdendo lentamente.

À medida que ela ia preparando o momento da partida, eu ficava remoendo momentos idos. Alguns momentos que não vou esquecer, alguns que vou lembrar pelo resto da vida, que vão estar sempre comigo, e outros que eu preciso esquecer, para que a vida consiga seguir para mim também.

Ela foi embora e não deixou muito que me contente. Deixou gavetas vazias, peças de roupa jogadas, fotos mal reveladas e fora de foco. Deixou a mesa meio suja e uma grande vontade de não ter mais vontade de nada. Deixou também a tevê ligada no canal mais chato. Ela deixou quase todas as portas entreabertas, a exceção de uma. Ela deixou, dolorosamente, meu ouvido com certos sons, meus olhos com certas imagens, e meus passos imprecisos, como os de criança que aprende a andar - a diferença é a meta.

Ela fingiu que, antes de ir, deixaria esperança; mas, se deixou, escondeu. Ela foi e ficou o gosto amargo na boca, a ânsia de vômito, a falta de apetite, o calor, o suor e a febre. Ela foi embora, me deixou sozinho, e muita coisa suspensa: o futuro, a vida, a plenitude.

Quando ela estava saindo, ouvi um barulho em sua mochila. Acho que era o meu sorriso, ainda farto, talvez, que ela também levou. Tenho quase certeza que ela levou minha agilidade física, parte do ar dos meus pulmões, do brilho dos meus olhos, do esvoaçar dos meus cabelos quando sopra o vento - porque, afinal, desde que ela se foi, parece que até o vento não existe mais.

Ela levou a poesia, a melodia, os sinos, as borboletas, a leveza, a descontração. Ela deixou a apatia, a urgência, a pressa, a agonia. Antes de ir embora, sem que eu visse, acho que ela fez uma reforma aqui no apartamento - está tudo muito maior que antes, mais espaçoso. E ela deixou a luz do quarto apagada, mas esqueceu a do porão acesa.

Ela se foi, e algo, em sua saída, me intrigou um bocado. Organizou sua mochila, pôs nas costas, e, debaixo do braço, levou consigo o tal volume mal embrulhado. E, a considerar o vazio que sinto aqui no peito, desconfio que sei o que havia naquele embrulho, afinal, já não sinto mais nada bater aqui dentro... E está muito complicado seguir em frente.

Eu sinto muito! A felicidade não mora mais aqui...



"Deixa o coração falar calar o que eu calei falei um dia"
("Se puder, sem medo", de Oswaldo Montenegro)