segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sinto muito! Ela não mora mais aqui...

"Às vezes é difícil esquecer... Sinto muito! Ela não mora mais aqui... Mas então, por que eu finjo que acredito no que invento? Nada disso aconteceu assim, não foi desse jeito. Ninguém sofreu e é só você que me provoca essa saudade vazia, tentando pintar essas flores com o nome de 'amor-perfeito' e 'não-te-esqueças-de-mim'."
("Acrilic on Canvas", de Legião Urbana)


Ela se foi. E agora, aqui, nesse vão, somos apenas eu e os escombros do que tentávamos construir. Ela reuniu alguns apetrechos numa mochila e se foi. E o pior de tudo não é, exatamente, o quanto doi. O pior de tudo é que ela se foi, inapelável e definitivamente, e, pela primeira vez, eu não pude ir com ela. Ao que parece, ela escapou por um túnel muito estreito, por onde só dava para passar um por vez. E nem seu rastro eu pude seguir.

É doloroso relembrar seus passos. Eu assisti à sua ida, ali, de perto, sem conseguir fazer nada. Eu estava praticamente inerte. Eu a vi compor sua bagagem com muita coisa que eu ainda precisaria ter comigo. Ela se foi, e levou o aconchego que agora eu peno para encontrar em outro lugar, porque, afinal, parecia exclusivo. Ela guardou nos bolsos grandes da sua mochila, a crença inabalável que eu tinha no lado bom das pessoas e a certeza que eu tinha de que vale a pena confiar.

No meio de suas arrumações, vi que ela preparou, sem tanto cuidado, um volume que deixou ao lado da mochila. Ela fez o embrulho com pouco caso, é verdade, mas eu quis acreditar que, por ter deixado fora da mochila, seria algo especial.

Ela levou consigo livros que não lemos juntos, mesmo que tenhamos prometido fazer isso. Levou músicas que não a fiz ouvir. Levou lugares que não visitamos e que ficaram ainda mais distantes da gente. Ela levou a roupa branca que eu usava às terças e, depois, em qualquer dia da semana. Levou até um flamenguismo feminino que eu sempre tinha comigo, mas que já vinha perdendo lentamente.

À medida que ela ia preparando o momento da partida, eu ficava remoendo momentos idos. Alguns momentos que não vou esquecer, alguns que vou lembrar pelo resto da vida, que vão estar sempre comigo, e outros que eu preciso esquecer, para que a vida consiga seguir para mim também.

Ela foi embora e não deixou muito que me contente. Deixou gavetas vazias, peças de roupa jogadas, fotos mal reveladas e fora de foco. Deixou a mesa meio suja e uma grande vontade de não ter mais vontade de nada. Deixou também a tevê ligada no canal mais chato. Ela deixou quase todas as portas entreabertas, a exceção de uma. Ela deixou, dolorosamente, meu ouvido com certos sons, meus olhos com certas imagens, e meus passos imprecisos, como os de criança que aprende a andar - a diferença é a meta.

Ela fingiu que, antes de ir, deixaria esperança; mas, se deixou, escondeu. Ela foi e ficou o gosto amargo na boca, a ânsia de vômito, a falta de apetite, o calor, o suor e a febre. Ela foi embora, me deixou sozinho, e muita coisa suspensa: o futuro, a vida, a plenitude.

Quando ela estava saindo, ouvi um barulho em sua mochila. Acho que era o meu sorriso, ainda farto, talvez, que ela também levou. Tenho quase certeza que ela levou minha agilidade física, parte do ar dos meus pulmões, do brilho dos meus olhos, do esvoaçar dos meus cabelos quando sopra o vento - porque, afinal, desde que ela se foi, parece que até o vento não existe mais.

Ela levou a poesia, a melodia, os sinos, as borboletas, a leveza, a descontração. Ela deixou a apatia, a urgência, a pressa, a agonia. Antes de ir embora, sem que eu visse, acho que ela fez uma reforma aqui no apartamento - está tudo muito maior que antes, mais espaçoso. E ela deixou a luz do quarto apagada, mas esqueceu a do porão acesa.

Ela se foi, e algo, em sua saída, me intrigou um bocado. Organizou sua mochila, pôs nas costas, e, debaixo do braço, levou consigo o tal volume mal embrulhado. E, a considerar o vazio que sinto aqui no peito, desconfio que sei o que havia naquele embrulho, afinal, já não sinto mais nada bater aqui dentro... E está muito complicado seguir em frente.

Eu sinto muito! A felicidade não mora mais aqui...



"Deixa o coração falar calar o que eu calei falei um dia"
("Se puder, sem medo", de Oswaldo Montenegro)

4 comentários:

suelen disse...

Eu já pensei ter sentido e ouvido falar de perda, mas nunca desse jeito. O maior obstáculo de um artista é por no papel, na tela, na música um sentimento, e este sentimento ser capitado. Você é sim um grande artista, que se faz de várias maneiras. Parabéns

Sayonara Rodrigues disse...

Eu sinto muito, mas quando a felicidade vai embora, não quer dizer que ela não vá voltar... Talvez ela precise de um tempo para se reerguer. Para tirar forças, sabe DEUS de onde, para poder segurar você... Talvez a felicidade, ou ela, precisem de espaço, de falta. Talvez precisem mais de você... Precisem mais da sua entrega, do seu sorriso, dos seus carinhos... Ou talvez, ela tenha cansado de ser feliz... Essas coisas podem acontecer. E, se ela levou o embrulho, é porque certamente não consegue se desprender de você!! Talvez ela já tenha voltado e você ainda nem percebeu...

Gostei do texto, mas como na maioria das vezes, não gostei das verdades...

Beijos!! TE AMO!!

Cadu Vieira disse...

Suelen,

não vou refutar sua opinião. Quando me chamam poeta, me incomodo. Não lembro de já me terem chamado de artista (ainda mais grande) - muito embora ser chamado de poeta seja o mesmo que ser chamado de artista. Mas, enfim, não vou refutar sua opinião.

Vou apenas, até certo ponto, corroborar com seu primeiro pensamento. Eu também nunca tinha sentido uma perda desse jeito. E afirmo com segurança: doi demais!

OBRIGADO, menina! Beijo! Abraço! Bons dias!

Cadu.

Cadu Vieira disse...

Sayonaras...

Parece que você fez, como eu fiz, uma metáfora que não define bem quem é a felicidade e quem é ela. Mas, você pode, você entende, você sabe. Você nem sabe quem é você, mesmo quando foi, em todos os aspectos, a felicidade.

Quero acreditar nas suas verdades, que doem menos que as minhas, ou nem doem. Mas, há verdades inescapáveis, e você e eu sabemos disso, né?

Beijo! Abraço! Tudo apertado! Bons dias!