quarta-feira, 18 de maio de 2011

Sinto muito! Ela não mora mais aqui... (reeditado)

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Ela se foi. E agora, aqui, nesse vão, somos apenas eu e os escombros do que tentávamos construir. Ela reuniu alguns apetrechos numa mochila e se foi. E o pior de tudo não é, exatamente, o quanto doi. O pior de tudo é que ela se foi, inapelável e definitivamente, e, pela primeira vez, eu não pude ir com ela. Ao que parece, ela escapou por um túnel muito estreito, por onde só dava para passar um por vez. E nem seu rastro eu pude seguir.

É doloroso relembrar seus passos. Eu assisti à sua ida, ali, de perto, sem conseguir fazer nada. Eu estava praticamente inerte. Eu a vi compor sua bagagem com muita coisa que eu ainda precisaria ter comigo. Ela se foi, e levou o aconchego que agora eu peno para encontrar em outro lugar, porque, afinal, parecia exclusivo. Ela guardou nos bolsos grandes da sua mochila, a crença inabalável que eu tinha no lado bom das pessoas e a certeza que eu tinha de que vale a pena confiar.

No meio de suas arrumações, vi que ela preparou, sem tanto cuidado, um volume que deixou ao lado da mochila. Ela fez o embrulho com pouco caso, é verdade, mas eu quis acreditar que, por ter deixado fora da mochila, seria algo especial.

Ela levou consigo livros que não lemos juntos, mesmo que tenhamos prometido fazer isso. Levou músicas que não a fiz ouvir. Levou lugares que não visitamos e que ficaram ainda mais distantes da gente. Ela levou manias que tínhamos e que nos faziam sorrir risos fáceis e agora, desgraçadamente, afastados de mim.

À medida que ela ia preparando o momento da partida, eu ficava remoendo momentos idos. Alguns momentos que não vou esquecer, alguns que vou lembrar pelo resto da vida, que vão estar sempre comigo, e outros que eu preciso esquecer, para que a vida consiga seguir para mim também.

Ela foi embora e não deixou muito que me contente. Deixou gavetas vazias, peças de roupa jogadas, fotos mal reveladas e fora de foco. Deixou a mesa meio suja e uma grande vontade de não ter mais vontade de nada. Deixou também a tevê ligada no canal mais chato. Ela deixou quase todas as portas entreabertas, a exceção de uma. Ela deixou, dolorosamente, meu ouvido com certos sons, meus olhos com certas imagens, e meus passos imprecisos, como os de criança que aprende a andar - a diferença é a meta.

Ela fingiu que, antes de ir, deixaria esperança; mas, se deixou, escondeu. Ela foi e ficou o gosto amargo na boca, a ânsia de vômito, a falta de apetite, o calor, o suor e a febre. Ela foi embora, me deixou sozinho, e muita coisa suspensa: o futuro, a vida, a plenitude.

Quando ela estava saindo, ouvi um barulho em sua mochila. Acho que era o meu sorriso, ainda farto, talvez, que ela também levou. Tenho quase certeza que ela levou minha agilidade física, parte do ar dos meus pulmões, do brilho dos meus olhos, do esvoaçar dos meus cabelos quando sopra o vento - porque, afinal, desde que ela se foi, parece que até o vento não existe mais.

Ela levou a poesia, a melodia, os sinos, as borboletas, a leveza, a descontração. Ela deixou a apatia, a urgência, a pressa, a agonia. Antes de ir embora, sem que eu visse, acho que ela fez uma reforma aqui no apartamento - está tudo muito maior que antes, mais espaçoso. E ela deixou a luz do quarto apagada, mas esqueceu a do porão acesa.

Ela se foi, e algo, em sua saída, me intrigou um bocado. Organizou sua mochila, pôs nas costas, e o embrulho que fez com desprezo, desfez e levou o conteúdo na mão esquerda. E só então entendi o porquê do vazio que sinto aqui no peito e o motivo da ausência de qualquer pulsação. E é inevitável. Está muito complicado seguir em frente.

Eu sinto muito! A felicidade não mora mais aqui...

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